O sexo do cérebro: como os biólogos constroem a diferença

Biel
27 min readDec 28, 2021

Afinal, homens e mulheres têm cérebros diferentes?

A distância entre Marte e Vênus

Todos estamos cientes das diferenças entre a cabeça de homens e mulheres: um racional, outro emocional, um agressivo, o outro condescendente. São estereótipos, dizem alguns construtivistas, é claro. Mas meninos e meninas obviamente diferem de muitas formas: níveis hormonais, tamanho, comportamento de autorregulação ou preferência por brinquedos. É claro que, em parte, a socialização é importante, mas… é obvio que seus níveis de comportamento e aptidões diferem em nível biológico; ou não?

Essas ideias ‘inatistas’ para justificar a hierarquia social não são novas; mas recentemente elas voltaram à tona, e ganharam credibilidade com argumentos infundados sobre neurociência e psicologia cognitiva. Essa história já é velha; em 1912 um neuropsicólogo e colaborador de Darwin explicava aos jornais que “o suprimento de sangue mais rico da região posterior do cérebro nas mulheres [corresponde à] seus delicados poderes de percepção sensorial, rapidez de pensamento e sensibilidade emocional, e…o suprimento de sangue mais rico da região anterior nos homens [corresponde à] sua maior originalidade em níveis mais elevados de trabalho intelectual, seu julgamento mais calmo e sua vontade mais forte”(Desconhecido, 1912: 4). Claro que essas justificações parecem um tanto quanto arcaicas e, obviamente, sexistas; mas, na medida em que a ciência se desenvolvia e recolhia para si a ‘neutralidade’, elas ganharam cada vez mais força e, mesmo depois de séculos, ele ainda faz parte das discussões mais acaloradas sobre sexo, gênero, natureza e cultura — o que têm apavorado diversas gerações feministas que, sob o lema “não se nasce, se torna” uma mulher (àla Beauvoir), saíram desde a década de 70 gritando que o idealismo sobre feminilidade era mais social do que natural. Tudo isso surgiu como uma maneira de fugir do determinismo biológico usado para privar as mulheres da vida social; é o que milhões de anos de evolução humana fizeram, e o que o cérebro feminino foi programado para fazer, ao menos desde que um grupo de grandes macacos, ao acaso, resolveu migrar para a savana e deixar a floresta, resolveu fazer ferramentas, desenvolver linguagem, praticar espiritualidade de um modo mais sofisticado; afirmaram os sexistas, sob o slogam de que ‘não é machismo se for ciência’.

Essa suposição dicotômica de natureza e cultura assombra os movimentos feministas desde o seu início. Parece que elas nunca tiveram uma reposta: se os estereótipos forem eliminados, todas as diferenças de gênero desaparecerão? Homens e mulheres realmente pensam de um jeito diferente? Homens são mais inteligentes que mulheres?

Quando a década de 1990 chegou, trouxe consigo o florescimento das tecnologias de ressonância magnética do cérebro(fMRI), fornecendo insights sobre o funcionamento cerebral e grandes avanços para neurociência. Á medida que ela se torna cada vez mais sofisticada, não demorou muito, obviamente, para que os neurocientistas retornassem sua busca por diferenças cerebrais entre homens e mulheres que vão responder à velha pergunta: “por que uma mulher não pode pensar como um homem?”. De fato, a procura pelo cérebro com gênero não para, e o interesse nas diferenças de sexo no cérebro aumentou nos últimos 25 anos (Maney, 2016: 2), em um click na internet encontramos milhares de artigos marcando diferenças sexuais no cérebro(e.g. Lotze, 2019; Choleris, 2018 e Sacher et al., 2013). Por exemplo, em 1992 John Gray lançava o famoso livro Homens são de Marte, Mulheres são de Vênus; iniciando quase duas décadas de publicação de guias similares que ainda lucram e desfrutam de críticas calorosas da Amazon (Cooke, 2019: pa. 1). Segundo muitos, o cérebro das mulheres confere melhores habilidades verbais, Louann Brizendine, por exemplo, afirmava em The Female Brain [O Cérebro Feminino] que uma garota nasce com uma máquina altamente sintonizada para ler rostos, ouvir tons emocionais em vozes e responder a pistas não ditas em outras pessoas. Segundo ela, “essa é a principal função do cérebro da menina, e é isso que leva uma mulher a fazer desde o nascimento. Esse é o resultado de milênios de conexões genéticas e evolutivas que já tiveram — e provavelmente ainda têm — consequências reais para a sobrevivência. Se você consegue ler rostos e vozes, pode saber o que um bebê precisa. Você pode prever o que um homem maior e mais agressivo fará. E como você é menor, provavelmente precisa se juntar a outras mulheres para se defender dos ataques de um homem das cavernas irritado — ou dos homens das cavernas” (Brizendine, 2006: 21). Outros dizem que o cérebro masculino é melhor em matemática por causa da exposição maior a testosterona no útero¹; sejam as diferenças anatômicas ou hormonais, elas são invocadas para explicar por que homens e mulheres tendem a entrar em tipos diferentes de profissões, comportamentos e formas de pensar. A lógica é de que, se uma estrutura Z, atribuída a um comportamento X, difere entre homens e mulheres, logo, a diferença de sexo Z causa a diferença de comportamento X (Maney, 2016: 3).

Nesse trabalho, pretendo buscar fornecer uma simples, porém completa, crítica aos discursos de gênero que envolvem o cérebro, e mostrar como os cientistas metamorfoseiam os estereótipos de gênero em matéria prima para a neurociência do cérebro, exemplificado principalmente nas ‘guerras’ do corpo caloso.

Nas trincheiras calosas

A física foi inventada e construída pelo homem. Você deve achar que isso foi dito pelos antigos intelectuais da mesma época em que viveu o colaborador de Darwin, e não por um cientista italiano sênior no Centro Europeu de Pesquisa Nuclear em Genebra (Cern), em 2018, certo? Infelizmente, não foi o caso. Alessandro Strumia, professor da Universidade de Pisa, afirmou em um seminário, composto principalmente de uma plateia feminina, sobre questões de gênero nos campos da física, que os cientistas do sexo masculino estavam sendo discriminados por causa de ideologias progressistas. Em sua apresentação de slides (disponível online), ele defendeu que a física se tornou “sexista contra os homens”; e que mulheres são frequentemente contratadas em vez de homens, e que têm mais citações de pesquisas. Em sua defesa, ele disse para o The Guardian que seus detratores estavam tentando pinta-lo ‘como um monstro que discrimina as mulheres’; porque “esta não é a mensagem que eles queriam ouvir nesta conferência” (Giuffrida e Busby, 2018: pa.7).

Se antigamente a inferioridade intelectual feminina foi medida com base no seu papel metafisico designado por algum criador, hoje, com o surgimento de técnicas mais sofisticadas de análise do cérebro, o argumento têm variado muito; alguns dizem que é porque as mulheres simplesmente não estão interessadas na carreira cientifica, as vezes por ‘inclinações inatas’, ou, como fizeram antigamente, que seu cérebro não era tão bom quanto o dos homens para isso. A questão cerebral, mais de duas décadas de discussões passadas, ainda assombra a discussão sobre mulheres e ciência, principalmente em campos STEM². Nas escolas secundárias dos Estados Unidos, meninas e meninos fazem cursos de matemática e ciências em números quase iguais³, no entanto, apenas cerca de 30% dos pesquisadores do mundo são mulheres; em física, por exemplo, apenas 21% dos bacharelados eram femininos em 2006(Hill, Corbett e St Rose, 2010: 63), em grande parte, devido ao assédio sexual, mulheres em campos STEM predominantemente masculinos tendem a sofrer assédio e sexismo mais frequentemente (cf. Funk e Parker, 2018).

O ano era 1982. O professor Ralph Holloway e sua aluna Chistine de Lacoste-Utamsing analisaram 14 cérebros humanos pós-morte. Eles descobriram que uma parte do corpo caloso, o esplênio, das mulheres é mais bulboso que o masculino; o corpo caloso é uma região composta por um emaranhado de fibras nervosas conectando os dois hemisférios cerebrais; portanto, a partir disso, especularam que, caso “um esplênio maior implica um maior número de fibras interconectando áreas corticais e que o número de fibras inter-hemisféricas se relaciona inversamente com a lateralização da função, então nossos resultados são congruentes com uma hipótese neuropsicológica recente de que o cérebro feminino é menos bem lateralizado — ou seja, manifesta menos especialização hemisférica — do que o cérebro masculino para as funções viso-espaciais”(Holloway e de Lacoste, 1982: 1432). Se você acredita nessa história, então o motivo pelo fato de os homens serem mais ‘mecanicistas’ e as mulheres não tanto, está resolvido: dada a hipótese da época de que os cérebros com funcionamento mais eficiente têm a divisão hemisférica de trabalho mais completa, as diferenças de comportamento e as melhores habilidades matemáticas dos homens são efeitos biológicos.

A descoberta ressuscitou os debates sobre a anatomia do cérebro e gênero, mal resolvido desde então, e agora, principalmente atrelado às questões sociais. Quando a pesquisa sobre isso estourou na década de 90, não demorou muito para que as afirmações infundadas do corpo caloso inundassem as revistas da Time e da Newsweek, cheias de especulações sobre qual função ele desempenharia no cérebro, e se “a maior comunicação entre os dois lados do cérebro pode prejudicar o desempenho de uma mulher em certas tarefas espaciais visuais altamente especializadas” (Gordon, 1992: 5 [online]).E alguns foram ainda mais longe: a neurocientista Sandra Witelson sugeriu que o corpo caloso dos gays era mais feminino que o dos homens heterossexuais e mais masculino do que o de mulheres heterossexuais — e que, “em alguns aspectos cognitivos, eles são neurologicamente um ‘terceiro sexo’” (Desconhecido, 1992: 539).

Afinal, se a suposição sobre a lateralização hemisférica estava certa, e os homens e mulheres pensarem de forma diferente, significará isso que existem profissões “masculinas” ou “femininas” mais adequadas a um sexo? Devem ser feitos esforços especiais para encorajar as mulheres a se tornarem engenheiras? É ‘‘natural’’ que os meninos tenham problemas para aprender a ler? Os gays, então, são mais femininos por causa de um corpo caloso mais feminino?

Parte do debate se devia ao fato da sub-representação feminina nos campos das ciências exatas. As mulheres, até hoje, não são maioria em campos científicos (ou melhor remunerados) da sociedade. A descoberta da diferença do corpo caloso rebobinou o debate sobre sexo e gênero para áreas biológicas deterministas. Afinal, natureza teria feito as mulheres para serem menos racionais (ou seja, burras)?

Por séculos, essas ideias fizeram com que o cérebro das mulheres foi subestimado ou mal representado; os preceitos científicos, influenciados pela noção grega da imperfeição feminina, assumiram que sua capacidade supostamente emocional e menos intelectual era justificativa para a razão de mulheres se concentrarem em seus dons reprodutivos e deixar a educação, o poder, a política, a ciência e qualquer outro negócio do mundo para os homens. Isso já parecia ter sido refutado a muito tempo pelo feminista francês François Poullain de la Barre, que argumentou que não havia nenhuma evidência para mostrar que, além das funções associadas à procriação, as mulheres fossem diferentes de homens de qualquer forma que fosse relevante para os cargos e funções na sociedade; e de estudos baseados nos métodos científicos da época, pode concluir: “L’esprit n’a point de sexe”, “a mente não têm sexo” (Rippon, 2019: 4–5); ele defendeu que, com condições que não restrinjam suas capacidades, educação e treinamento, as mulheres poderiam ser tão inteligentes ou mais que homens; suas conclusões contrariaram a herança grega da inferioridade feminina(ibid.). Mas parece que as observações de La Barre têm sido ignoradas pela maioria das pessoas — e a ideia que se pode ‘sexar’ as capacidades de um cérebro voltaram à tona na medida em que questões como igualdade de gênero vêm sendo visibilizadas. Até o início dos anos 2000, foi o corpo caloso que esteve em cena. Ele, sendo maior nas mulheres, pensaram os cientistas, favoreceria a intercomunicação hemisférica — ao contrário do dos homens— e então, o argumento do corpo caloso foi usado para argumentar que homens e mulheres usam seus cérebros de modos diferentes. E ele continua vivo, até agora.

O prólogo da história

Mas para que você entenda como chegamos até aqui, preciso te levar por um turbulento resumo da psicologia dos anos 50 até o entendimento das décadas passadas; quando o dr. Robert Sperry e seus alunos realizou um experimento de testes com pacientes epiléticos — de cérebro divido, uma vez que nessa época, os casos graves de epilepsia eram tratados pelos médicos cortando as fibras do corpo caloso, separando as duas metades do cérebro (Fausto-Sterling, 1985: 47) — o que revelou que neles, as diferentes metades de um cérebro supostamente simétrico tinham capacidades muito diferentes; por exemplo, se um paciente vendado pegar um objeto com a mão direita (controlada pelo hemisfério esquerdo), ele pode nomeá-lo e descreve-lo, mas se o faz com a mão esquerda,(controlada pelo hemisfério direito), não; ao contrário, ele pode senti-lo com o tato e reconhece-lo visualmente; do mesmo modo, com o olho direito coberto, esses pacientes não conseguem ler ou copiar palavras que aparecem na frente do olho esquerdo (conecta-se ao hemisfério direito), embora reconheçam o conteúdo. Isso sugere que as capacidades como a da linguagem, leitura e fala, se localizam principalmente no hemisfério direito, já capacidades não-verbais, processamento holístico e visual se localizam no hemisfério esquerdo (Ibid.: 46–48) (Figura 1). Não muito depois disso, os cientistas propuseram a ideia de que os cérebros dos homens operam de maneira significativamente mais lateralizada ou assimétrica do que as das mulheres, pelo fato de eles serem supostamente mecanicistas e visuais.

Figura 1. As ‘funções’ predominantes de cada hemisfério; note que o hemisfério direito controla, inversamente, funções do lado esquerdo do corpo, e o hemisfério esquerdo controla o lado direito do corpo. Imagem adaptada por mim; extraída de: http://what-when-how.com/neuroscience/the-thalamus-and-cerebral-cortex-integrative-systems-part-5/

Quem iniciou isso foi a psicologa Jerre Levy(1969), em fins da década de 60, partindo não de uma evidência, mas da hipótese lógica de que os cérebros com funcionamento bilateral se limitam a um funcionamento ou verbal ou espacial — seu trabalho ganhou atenção posteriormente de outros psicólogos, como Anthony Buffery e Jeffrey Gray, que em 1972 também defendiam uma diferença sexual de lateralização (cf. Buffery, 1971). Em seus trabalhos posteriores; Levy desenvolveu sua afirmação que as funções da linguagem são representadas mais bilateralmente no cérebro feminino do que no masculino, que, em contraste, teria a divisão hemisférica de trabalho mais completa ( e.g. Levy e Reid, 1978). Isso supõe que, portanto, as mulheres podem usar ambos os hemisférios para funções de linguagem, “enquanto os homens fazem uso predominantemente o hemisfério esquerdo” (Sommer et al., 2004: 1845–1846).

Esse padrão mais bilateral de representação de linguagem resulta em melhores habilidades verbais, mas atrapalha o processamento viso-espacial porque as funções verbais do hemisfério direito “transbordam” para o lado esquerdo e atrapalham suas funções espaciais (Fausto-Sterling, 1985: 49–50). Basicamente, isso implica que o cérebro feminino sofreria de uma confusão de funções fundidas e, portanto, menos especializadas, ele é mais intuitivo. Se no sexo masculino o contrário ocorre, a lateralização causaria uma conexão menos fácil e suas habilidades sairiam intactas; “o hemisfério esquerdo friamente lógico de um homem poderia enfrentar o mundo sem se distrair com as intrometidas emoções, enquanto as habilidades espaciais incrivelmente eficientes de seu hemisfério direito poderiam se manter focadas, como um laser, na tarefa em questão” (Rippon, 2019: 33). E essa ideia de que homens e mulheres usam seus cérebros de formas diferentes devido a lateralização ganhou poder. O principal argumento sobre isso se baseava em dados clínicos. No início da década de 80, a psicóloga Jeannette McGlone(1980) argumentou que mulheres eram menos lateralizadas com base em uma revisão da literatura relatando que pacientes do sexo feminino exibem afasia com menos frequência após lesões do hemisfério esquerdo do que pacientes do sexo masculino(p.216); ela confiou fortemente nesses estudos médicos em pacientes adultos para argumentar que quando diferenças de sexo são encontradas, a grande maioria é compatível com hipótese que os cérebros masculinos apresentam maior assimetria funcional do que os cérebros femininos; mesmo assim ela é forçada a reconhecer que “quando analisadas estatisticamente, as interações sexo por lateralidade costumam ser mais fracas do que o efeito principal da lateralidade e são facilmente alteradas por outros fatores, como idade, etiologia da lesão, estratégias e procedimentos de teste. Assim,não se deve esquecer talvez a conclusão mais óbvia, que é que os padrões básicos da assimetria cerebral masculina e feminina parecem ser mais semelhantes do que diferentes” (p.226). Paradoxalmente, ela insiste em concluir que “dados suficientes foram acumulados para levar a sério a noção de variação sexual na assimetria cerebral” (pp. 226–227). E mesmo que as provas tenham mostrado mais similaridade do que diferença, a hipótese ganhou adeptos; principalmente quando voltou à tona no ano de 2013, quando um estudo de neuroimagem cerebral descobriu que os cérebros dos homens tinham em média mais conexão intra-hemisférica e o de mulheres, inter-hemisférica — isto é, que das mulheres eram altamente conectados nos hemisférios esquerdo e direito, em contraste com os cérebros dos homens,onde as conexões eram tipicamente mais fortes entre as regiões anterior e posterior (Ingalhalikar et. al, 2013; embora veja também as observações de Daphna Joel sobre o estudo e a resposta recebida, respectivamente em: Joel & Tarrasch[2014] e Ingalhalikar et. al [2014]). As manchetes, claro, foram a loucura: o The Guardian disse que os “mapas de circuitos neurais mostram que os cérebros das mulheres são adequados para habilidades sociais e memória, o dos homens, percepção e coordenação” (Sample, 2013); mesmo que diversas pesquisadoras tenham alertado para o fato de que apenas 2% dos seus métodos de análise encontraram diferenças marcantes (Rippon et al., 2021; para outras críticas, ver Stafford [2019] e Fine [2021]). Uma neurocientista da Emory University, em especial, destacou que, apesar dos autores terem concluído que os sexos tinham diferenças fundamentais — e serem suportados pela mídia; as estatísticas “relatadas […] indica[va]m que os sexos se sobrepunham em quase 90%” (Maney, 2015: 4). A crença generalizada da capacidade das mulheres de serem melhores do que os homens na execução de múltiplas tarefas (Szameitat et al., 2015), por exemplo, começou a ser invocada sob a justificativa da maior conexão inter-hemisférica e, junto a isso, usada para justificar a feminização do trabalho doméstico (entretanto, os testes de capacidade multi-tarefada são contraditórios, muitos não encontram suporte para a diferença [Hirsch, Koch & Karbach, 2019 e Hirnstein, Larøi & Laloyaux, 2019], enquanto alguns mostram que os homens superam as mulheres [Mäntylä, 2013]); ao contrário, o cérebro dos homens, conectado dentro dos hemisférios, é programado a habilidades visuais e espaciais.

Medições da diferença

Se, por um lado, a descoberta de Lacoste-Utamsing e Holloway alertaram alguns a voltarem a biologia para conceituar o gênero, ela também iniciou uma grande guerra entre diversos pesquisadores tentando encontrar correlatos, ou a falta dele, no cérebro humano — tudo isso enraizado no conceito fantasma da diferença sexual da assimetria cerebral. Ela fornece não só um exemplo de como alguns conceitos científicos permanecem, mesmo sem provas, no imaginário dos cientistas apenas para atender seus estereótipos, mas também como qualquer perspectiva psicológica pode resultar em interpretações diferentes de acordo com os métodos, análises e meios usados. Os maiores alvos da intriga diziam respeito às técnicas de obtenção do corpo caloso (abreviado CC). Em média, o cérebro dos homens é 10% maior do que o das mulheres,uma diferença que corresponde à média de altura entre os sexos; o que significa que se essa diferença não for ‘ajustada’, qualquer estrutura cerebral masculina será diferente. Mas nunca houve um consenso sobre como o faze-lo: os “primeiros estudos tomaram o peso cerebral como uma boa indicação do tamanho; outros achavam que a área do cérebro era mais apropriada; estudos posteriores pensaram que o volume cerebral era uma variável melhor de se controlar”estudos posteriores pensaram que o volume cerebral era uma variável melhor de se controlar”estudos posteriores pensaram que o volume cerebral era uma variável melhor de se controlar”(Rippon, 2019: 31) .

É porque o corpo caloso não é um órgão de fácil acesso, não é tão fácil de medir ou entender. Pense algo similar a um emaranhado de fios que se juntam em um ‘bolo’ bem no meio dos hemisférios, mas se desintegram conforme se espalham e, literalmente, se fundem ao cérebro — ou, ainda, imagine um monte de cabos de luz agrupados em uma única rua central, que se espalham aleatoriamente pelo resto de um bairro, se perdendo na medida em que se distanciam do meio. Para que os pesquisadores possam medir e entender esse órgão, eles precisam ‘dividi-lo’ em subáreas, ou, para utilizar a linguagem de Anne Fausto-Sterling (2000), precisam, antes de tudo, “domesticá-lo” (pp. 120–121), criando subdivisões arbitrárias para compreender seu objeto de estudo e, a partir disso, poder interpretar essa descoberta; frequentemente, essa domesticação exigia que exigia que as equipes da época tirassem apenas a fatia central (o ‘bolo’ de fios) de seu centro; criando uma representação bidimensional do corpo caloso, a seguir, se traça um contorno da superfície cortada do CC no papel, para medi-lo manualmente ou por computador. Esse processo metodológico, além de mais simples do que dissecar manualmente por horas o órgão completo, fornece uma padronização com mais facilidade, o que garante que diferentes equipes compararem resultados e falem sobre a mesma coisa, além de que, um objeto assim e mais fácil de medir do que um objeto tridimensional (p.124). Uma vez dividas,cada parte recebe um nome, como esplênio, istmo, tronco, rostro, entre outros, ou uma letra; e dependendo da equipe e do pesquisador, diferentes métodos de medição são escolhidos e constroem diferentes números de subdivisões (p. 127) (Figura 2). Mas essas subdivisões são categorias inventadas pela necessidade de classificação que humanos têm como o corpo, não fatos que falam por si só. Ao dividir e ‘cortar’ o CC em pedaços, o pesquisador o transforma em outro objeto, aquele órgão estranho, selvagem que precisava ser domesticado se adapta, e agora, se metamorfoseia em um objeto de estudo que pode ser medido, ele deixa de ser um objeto puramente natural para agora se tornar algo derivado do natural, uma representação que só pode adquirir profundidade na medida em que é interpretada.

Figura 2. Diferentes visões do corpo caloso e métodos de medição do esplênio: método A: uma linha é desenhada perpendicular ao comprimento da linha reta do CC; método B: uma linha é desenhada perpendicular à bissetriz da linha curva do CC; método C: uma linha é desenhada perpendicular ao comprimento da linha reta do CC. Onde encontra a parede do CC, a linha é estendida perpendicularmente à tangente da parede; método D: o centro de gravidade do CC é calculado e projetado na linha de base do CC. A partir deste ponto, cinco linhas são traçadas para cruzar o CC em intervalos de 30º. O esplênio é a porção posterior. Imagens extraídas de Reyes, Bragg-Gonzalo e Nieto, 2020; p.2 e Bishop e Wahlsten, 1997; p.583.

No meio de toda essa discussão, muitos se esqueceram da estrutura complexa e material que o corpo caloso original é, tornando todas aquelas categorias, dede o esplênio ao rostro, em “coisas biológicas, estruturas vistas como reais, em vez das subdivisões arbitrárias que realmente são”(ibid.). Isso não torna o método cientifico inválido, o problema começa quando se confunde uma interpretação humana, baseada na necessidade de classificação, começa a se transformar em uma verdade absoluta. No debate sobre o CC, todas essas questões se perderam, e o próprio CC foi tratado como objeto medido, e não uma fatia arbitrariamente extraída e domesticada. Parte disso acontecia porque, na época, pouco se sabia sobre a anatomia funcional detalhada do corpo caloso intacto, a única maneira de atribuir um significado a ela era por correlações abstratas — esse, naturalmente, era o perigo da questão (pp. 127–130). Além disso,um incomodo adicional surgiu da técnica pós-morte e sua metodologia; para preparar os cérebros, é preciso conservá-los — um processo chamado fixação; e laboratórios diferentes, usam meios de fixação diferentes para isso — e se os métodos de preservação da amostra resultasse em algum tipo de distorção ou encolhimento da forma original?

O final da história

Os pesquisadores analisaram e revisaram o maior número de cérebros que podiam para chegar a um consenso; mas parece que até hoje, o assunto não se encerrou. Um estudo de 1985 subdividiu o corpo caloso em sete partes e concluiu que “nenhum dimorfismo sexual no tamanho do corpo caloso foi observado” (Witelson, 1985: 666).

Mas se os meios de conservação poderiam implicar uma distorção da amostra, então os cérebros pós-morte não garantiam nenhuma conclusão absoluta; então muitos outros estudos produzidos na década de 90 tentaram clarear os horizontes. Nesse momento, surgia uma nova tecnologia, a Imagem de Ressonância Magnética (MRI) — que deu a eles uma luz sobre o assunto: agora eles podiam analisar imagens de voluntários vivos que aceitassem fazer parte da amostra. E então, uma porção considerável da literatura sobre o corpo caloso apareceu utilizando analises de MRI — a desvantagem é que esses estudos são mais difíceis padronizar em relação ao peso ou tamanho do cérebro. Até o início dos anos 2000, muitos estudos afirmaram mais do mesmo: o corpo caloso dos sexos era mais similar do que diferente; uma equipe escreve que “não é possível prever nenhum dos dois, sexo ou idade, pela forma ou tamanho de qualquer corpo caloso individual” (Byne, Bleier & Houston, 1988: 224). Dois autores fizeram uma pequena revisão da literatura sobre as diferentes metodologias sobre o assunto em 1996 e concluíram que “[fom]os incapazes de demonstrar um dimorfismo sexual favorecendo as mulheres, em qualquer área transversal do corpo caloso, ou em suas subáreas, usando medição absoluta e relativa” (Constant & Ruther, 1996: 105). Do mesmo modo, uma meta-análise, com 49 estudos, pode concluir que “uma literatura substancial sobre o CC humano não apoia qualquer diferença relacionada ao sexo no tamanho ou forma do esplênio, sejam os ajustes feitos ou não para o tamanho do cérebro inteiro ou do córtex. Como nenhuma diferença significativa entre os sexos é estabelecida para o esplênio, não há razão para especular sobre sua possível contribuição para as diferenças cognitivas de gênero. A única descoberta significativa consistente é que os homens adultos têm um tamanho médio do cérebro maior, um fato conhecido há quase um século, e que eles também têm um tamanho médio maior de todo o corpo caloso” (Bishop & Wahlsten, 1997: 590, ênfase adicionado). Mesmo nos estudos que marcam diferenças sexuais, elas são altamente sobrepostas; uma esquipe escreve, após achar diferenças sexuais “limitadas, mas definidas”, em destros, que suas medidas “variam quase tanto dentro do sexo quanto entre os sexos” (Elster, DiPersio & Moody, 1990: 325).

Mas e quanto as evidências atuais? Bem, estamos sem consenso: uma gama de evidencias sugere que o dimorfismo desaparece quando o tamanho do cérebro é ajustado (Tepest et al., 2010; Leonard et al., 2008; Bruner et al., 2012 e Luders, Toga e Thompson, 2014), outra, que ele permanece mesmo após o ajuste (Ardekani, Figarsky e Sidtis, 2013). Parece que não existe uma única resposta correta. O sr. Ralph Holloway segue defendendo a diferença sexual do corpo caloso — em 2017, ele publicou um artigo citando evidências que apoiam sua conclusão. E, claro, ele usa o estudo de 2013 que virou manchete, sobre as diferenças de lateralização entre homens e mulheres, como uma evidência que “reforça claramente nossas descobertas sobre o CC” (Holloway, 2016: 22). De qualquer modo, as disputas, que mesmo depois de quase meio século de discussões não chegou a um consenso, é um ótimo exemplo de como os cientistas metamorfoseiam os símbolos pré-existentes da masculinidade e feminilidade em coisas materiais — como o cérebro. Sem dúvida; o que todas essas investigações têm em comum,independente de qual seja a justificativa,é “a remodelagem do dualismo de gênero e da ‘substancialização da diferença’ — ou seja, do enraizamento do gênero em determinadas marcas corporais –, através das ciências do cérebro” (Nucci, 2018: 2, veja também Nucci, 2010, 2019). Quando hoje as feministas vem a público se preocupando com a falta de ocupação feminina em campos da engenharia, da matemática, da ciência, não hesitam em prosseguir o argumento: “o cérebro feminino”, dizem-nos, “é menos lateralizado, logo, elas não pensam matematicamente tão bem quanto eles”, e — curiosamente — surgem relatos científicos localizando essa diferença de lateralização. O gênero binário, desde meados da emergência da ciência, ajudou a moldar as perguntas que são feitas, as teorias e modelos propostos, as práticas de pesquisa empregadas e a linguagem descritiva usada no campo da pesquisa das diferenças sexuais. A história da lateralização cerebral bem o demonstra; não é só uma história de descobertas e inovações científicas sobre o conhecimento do cérebro, é a história de como alguns cientistas se convenceram de que havia algo no instinto, e então no corpo, e posteriormente nos neurônios, que justificasse sua compreensão do mundo, sua ordem social estabelecida e seus estereótipo sobre cada corpo reprodutivo.

Conclusões: cérebro azul ou rosa? (spoiler: a maioria é roxo)

A justificativa do corpo caloso não foi o único argumento usado para levantar novamente a discussão sobre ciências exatas e cargos femininos/masculinos; ou sobre a dicotomia natureza/cultura. É claro, tentar revidar, ou analisar, cada uma dessas justificativas excederia o escopo deste trabalho — e muitas outras mulheres já fizeram isso brilhantemente melhor do que eu. Todas essas ideias, obviamente, partem do pressuposto de que há um cérebro feminino, que é empático e delicado, e um masculino, que é mecanicista, agressivo. Então, de onde seguimos a partir daí? O cérebro tem gênero? Na verdade, não sabemos. Aqueles cientistas que se esforçam para encontrar relações entre o sexo,anatomia e função cerebral e convencer os outros e que existem diferença irremediáveis entre os cérebros masculinos e femininos sofrem do problema de rapidamente se mover de uma estrutura anatômica para uma função comportamental. Analisar anatomia é razoavelmente simples, mas como interpreta-la, se nem o cérebro é facilmente visível; quanto mais os neurônios envolvidos nos processos subjacentes do cérebro? Além disso,é extremamente complicado estabelecer uma diferença inata em cérebros adultos — dada a grande plasticidade que o cérebro tem, esse cérebro poderia ter sido moldado pelas experiências vividas; por exemplo, no fim da década de 90, quando o GPS ainda não era tão viável e os taxistas precisavam memorizar os mapas das ruas e rotas, um estudo em Londres descobriu que seus cérebros tinham uma parte, o hipocampo,maior do que a média de outros humanos, e que isso acontecia porque, à medida que eles passavam mais tempo tendo necessidade de memorizar mapas e ruas para o trabalho, essa estrutura se modificava para acomodar uma enorme quantidade de recordações de experiência adquirida com a prática de dirigir (Maguire et. al, 2000)¹⁰. O que impede que experiencias sociais de gênero tenham moldado os cérebros dos dois sexos de forma diferente? Um estudo descobriu que somente quinze minutos de estresse são o suficiente para mudar o sexo de algumas características do cérebro da forma masculina para a feminina ou vice-versa (cf.Joel e Fine, 2021). Tomemos o exemplo de uma pesquisa que descobriu que a subdivisão do córtex pré-frontal ventral, área envolvida em cognição social e julgamento interpessoal, era 10% maior nas mulheres em comparação aos homens depois de corrigir os tamanhos(o cérebro dos homens é 10% maior que o das mulheres, então qualquer comparação de regiões cerebrais precisa ser dimensionada em proporção a essa diferença). Conhecida como SG, eles descobriram que essa subdivisão se correlaciona com um teste amplamente dado em cognição social, de forma que todas as mulheres que obtiveram pontuação mais alta tendiam a ter SGs maiores. Talvez, os pesquisadores pensaram, talvez seria essa uma herança evolutiva, da mulher que precisava ter altas habilidades sociais para dar conta de liderar a prole, talvez, pode ser, fosse função dos hormônios,genes sexuais ou hormônios pré-natais que configurassem essa diferença inata (Wood et al., 2008; Eliot, 2009). A melhor maneira de entender se essa diferença realmente é inata é olhar para as crianças; portanto, a equipe conduziu um novo estudo em que mediram as mesmas áreas do lobo frontal em crianças entre 7 e 17 anos de idade. A descoberta? Os meninos tinham SGs ligeiramente maiores! Em contraste com o estudo anterior, este teste mostrou que a consciência e traços de feminilidade se correlacionam com SGs menores, não maiores, como em adultos. Em ambos os estudos, eles também deram um questionário de gênero que avalia o grau de masculinidade e feminilidade. O dados indicaram que a morfologia do SG está relacionada à feminilidade — entretanto, em adultos, o tamanho de SG maior se correlacionou com a autoavaliação de traços femininos em homens e mulheres, nas crianças, no entanto, menores volumes proporcionais de SG correlacionaram-se com graus mais elevados de identificação com traços femininos em meninas, mas não em meninos. Isso sugere que pode haver uma correlação entre o SG e a percepção e gênero social, refletindo o grau de ‘feminilidade’ em alguém: mulheres menos femininas tem SG menor em comparação com mulheres femininas,o mesmo para homens. Mas por que essa diferença entre os cérebros das crianças e adultos? Seria isso natureza ou criação? O SG maior das mulheres é, realmente, ‘inato’, ou seria ele uma consequência de viver pertencendo a um grupo (o feminino) que pratica maior resposta empática? (Eliot, 2009: pa. 11 ).

A falta de consenso aqui se deve ao fato de que a maioria dos pesquisadores não assume um lado especifico no debate político-cientifico, na verdade, diversos neurocientistas têm reconhecido que, seja em maior ou menor grau, os cérebros de homens e mulheres são igualmente semelhantes e diferentes. Um dos principais nomes quanto a diferença sexual na pesquisa clínica, Margaret McCarthy, neurocientista e farmacologista americana que produziu uma vasta e, eu diria, brilhante literatura sobre o desenvolvimento epigenético das diferenças sexuais¹¹, diz que “o cérebro de cada homem e mulher é um mosaico de masculinização, feminização e semelhança relativas” (Joel & McCarthy, 2017: 381); mas ela lembra que isso não significa, necessariamente, que eles não possam ser classificados de formas diferentes, ou que sejam idênticos — as diferenças sexuais em algumas estruturas, todos nós sabemos, existem — ; e assim, ela propõe um modelo onde ocorre um processo de “canalização”, onde quando um caminho é escolhido, outros são excluídos; de modo que as diferenças sexuais no cérebro estejam sujeitas a isso, garantindo diferenças sexuais fortes em diversos pontos, mas não muito, uma vez que os sexos precisam ficar dentro do alcance um do outro, talvez para evitar uma divergência significativa que os torne reprodutivamente incompatíveis(p.382).

De fato, hoje em dia muitos estudiosos da área entendem que o cérebro por si só não é o suficiente para explicar todas as diferenças sexuais existentes — mas isso não significa que ele é descartável quando se trata de gênero; além disso, existe uma notável inconsistência nas descobertas em relação a estrutura e função, e diversos estudiosos ainda não encontram provas consistentes em sua pesquisa; o problema da pesquisa cerebral diz respeito também aos problemas com o tamanho da amostra: estudos com populações pequenas não são sempre confiáveis, e a dificuldade em encontrar uma amostra grande envolve desde questões metodológicas ao baixo financiamento de muitas equipes. O único estudo de porção grande feito até 2018, com mais de 5.000 cérebros encontrou diferenças sexuais marcantes, a maioria diminuindo depois da ‘correção’ de tamanho cerebral(Ritche et al., 2018: 2964–2967; figura 2B). Mas um estudo com mais de 9.000 cérebros humanos, aparentemente o maior produzido até agora, descobriu, depois de diversas classificações computadorizadas, que “a arquitetura funcional do cérebro provavelmente não seria conceituada como binária, como é o caso do sexo biológico, mas era mais provável que fosse continuamente representada em um espectro de gênero do cérebro” (Zhang et al., 2021: 3031); assim, eles propuseram um modelo onde o cérebro humano é descrito como um continuum de masculino/feminino — e descobriram que muitos se encontravam no meio, na seção ‘andrógena’ do modelo. Uma contribuidora do estudo, Barbara Jacquelyn Sahakian, escreveu em um site que em uma sub-amostra da pesquisa, apenas “25 por cento dos cérebros foram identificados como masculinos, 25 por cento como femininos e 50 por cento foram distribuídos pela seção andrógina do continuum” (Sahakian et al., 2021), além disso, aqueles localizados no meio do continuum tiveram uma saúde mental melhor em comparação com aqueles nos extremos, principalmente menos sintomas de internalização, o que pode significar uma pequena vantagem biológica ter um cérebro mais ‘andrógeno’ do que generificado. Uma descoberta interessante diz respeito a interação do sexo com a idade: os padrões cerebrais mudavam conforme o indivíduo envelhecia, por exemplo, houve uma associação pequena entre a masculinidade das mulheres e a idade: conforme mais velhas as mulheres ficavam, mais próximas da extremidade masculina se tornavam (Zhang et al., 2021: 3030).

Outros estudos que abandonam a dicotomia binária de apenas masculino/feminino, e aplicam esse modelo de ‘continuum’ também chegam a resultados iguais (veja, por exemplo, Reis & Carothers, [2014] e Weis et. al [2020]). Similarmente, a neurocientista e feminista Lise Eliot publicou uma revisão abrangente em forma de meta-síntese em 2021, na qual ela analisa 3 décadas de estudos sobre a diferença sexual do cérebro humano; a conclusão que ela chegou, foi uma falta de evidências sobre o dimorfismo sexual, principalmente depois que o tamanho do cérebro era corrigido. “Os cérebros de homens e mulheres não são dimórficos (como as gônadas)”, ela escreveu, “mas monomórficos, como os rins, o coração e os pulmões, que podem ser transplantados entre mulheres e homens com grande sucesso” (Eliot, 2021: 690) .

A partir disso, Sahakian faz um apelo, e eu concordo, que “precisamos evitar estereótipos extremos e oferecer às crianças oportunidades bem equilibradas à medida que crescem”. Se a androginia psicológica traz tantos benefícios, como a literatura da psicologia mostra, então, não seria melhor incentivarmos as pessoas a abandonar noções de gênero estereotipadas e viver como gostariam, de fato?

Notas:

1. Apesar da noção de que mulheres são piores que os homens em matemática devido à “sua natureza mais empática e menos sistemática”, evidencias crescentes sugerem que ambos têm desempenhos iguais no início da vida — o que significa que não nascem diferentes; veja Kane e Mertz, 2012; Colom, et al., 2000; Hutchison, Lyons e Ansari, 2018 e Bakker et al., 2019.

2. STEM: abreviação do inglês que significa “science, technology, engineering and mathematics”, o qual agrupa disciplinas educacionais em “ciência, tecnologia, engenharia e matemática”

3. Cf. nota 1.

4. Há quem argumente em favor de uma diferença no nascimento baseada em estudos com neonatos. Um dos mais referenciados, dos anos 2000, relatou preferencias de sexo em uma pequena parte dos bebês; o que fizeram foi mostrar para eles um móbile ou um rosto e medir se havia diferença no tempo de olhar para um ou outro (objeto social e objeto físico-mecânico, respectivamente); eles descobriram que, 40% dos meninos preferiam o objeto mecânico e 25% preferiam o outro, e 36% da meninas preferiam o objeto social, em comparação com 17% que preferiam o contrário (Conellan et al., 2000. Tabela 1; p.116). Acontece que esse e outros estudos são, em grande parte, contraditórios, e a maioria não foi replicado: um experimento mais rigoroso, com crianças entre 4 e 5 meses, viu que as preferências dos bebês eram maiores para rostos, independente de sexo (Escudero, Robbins e Johnson, 2013); outro mostrou que ambos os sexos, com 12 meses, tendem a preferir rostos ao invés de carros; as diferenças só surgem aos 18–24 meses(Jadva, Hines e Golombok, 2010). Pode-se argumentar que, pelo fato de primatas terem mostrado alguma preferência por brinquedos relacionados a sexo, haveria uma diferença inata na humanidade — mas se esse é o caso, o que explica o fato de as diferenças surgirem mais tardiamente? Alguns estudos encontram que os pais interagem de modo diferente de acordo com o sexo da criança nos primeiros meses (Clearfield & Nelson, 2006; Johnson et al.,2014 e Fausto-Sterling et al., 2015); seria possível que essa interação influenciasse o comportamento posterior? Claro, é perfeitamente possível que aja uma inclinação biológica para a diferença por brinquedos, mas não é ela tampouco que explica porque e como surgem outras diferenças existentes; ademais, eu argumentaria que precisamos investigar mais precisamente o que acontece com as crianças entre os 6 e 18 meses para que elas aprendam a escolher esses brinquedos, e como essa diferença se desenvolve. É obvio que existe uma influência biológica quando se trata de brinquedos preferenciais entre os sexos, mas como ela interage com a cultura, com o ambiente, e com o desenvolvimento da criança? Corpos não são estáticos, eles precisam se desenvolver; o cérebro humano, por exemplo, só completa seu desenvolvimento aos 18–21 anos — a biologia não é algo imutável, nem um destino,é um múltiplo de possibilidades a serem exploradas.

5. A concepção grega é de um único sexo: o dimorfismo se estabelecia em grau de perfeição ou não — homens e mulheres tinham exatamente os mesmos órgãos; na fêmea, entretanto, localizavam-se no interior do corpo devido à falta de calor vital. A vagina, era vista como um pênis invertido, e a mulher, como um homem imperfeito; razão pela qual em Política, Aristóteles afirma que “a relação entre homem e mulher consiste no fato de que, por natureza, um é superior, a outra, inferior, um governante, outra governada”. Também razão pela qual a sociedade grega nunca reservou as mulheres notável participação política ou econômica. Citação em Lopes (2010: 93).

6. Ele ficou mais conhecido depois de sido citado por Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, a frase citada era: “tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, pois eles são, a um tempo, juiz e parte”. Parece que ele escreveu isso em De l’égalité des deux sexes, De l’éducation des dames, De l’excellence des hommes; citado em Reuter, 2019.

7. Posteriormente, eles conduziram outro estudo com corpos pós-morte ‘confirmando’ essa suposição (Holloway e de Lacoste, 1986).

8. A seguir está toda a literatura lida para esta declaração: Bell & Variend (1985) ; Bishop & Wahlsten (1997) ; Byne, Bleier e Houston (1988) ; Clarke et al. (1989) ; Constant e Ruther (1996) ; Demeter, Ringo e Doty (1988) ; Kertesz et al. (1987) ; O'Kusky et al. (1988) ; Oppenheim et al. (1987) ; Pozzilli et al. (1994) ; Weis et al. (1989) e Witelson (1985) .

9. Veja Fausto-Sterling (1895 ; 2000) ; Fine (2010) ; Hines (2007) ; Hyde (1981 ; 2005) ; Hyde e Linn (1988) ; Hyde e Mertz (2009) ; Hyde et. al (2010) ; Jordan-Young (2010) ; Rippon (2019) e Reiches & Richardson (2020).

10. A diferença sexual do hipocampo é uma das mais citadas também; alguns autores relataram um tamanho maior no cérebro das mulheres do que nos homens, onde foram invocadas para explicar as diferenças entre homens e mulheres na aprendizagem e na emoção — já na década de 90, uma equipe disse que o hipocampo das mulheres era maior que o dos homens (Filipek et al., 1994: 354). Mas tendo em vista que essa região e o cérebro como um todo são altamente plásticos, nada impede que as experiencias de gênero tenham moldado o hipocampo de sexos diferentes.

11. Veja McCarthy (2019; 2020); McCarthy & Arnold (2011) e McCarthy, et al. (2012).

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Biel

Estudando anarquismo, teoria Queer e evolução. TERFs não são bem vindas